segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

AS TÚNICAS DE URTIGAS

Numa terra muito distante, havia um rei bondoso e sábio, que tinha uma linda filha, chamada Lúcia e onze filhos, todos belos e inteligentes. O soberano, que já estava velho e cansado, amava ternamente sua esposa e seus filhos.
Infelizmente, a rainha morreu, e o rei, sentindo-se triste e solitário, resolveu casar-se com a viúva de seu primo, que tinha sido o soberano de um país vizinho.
A felicidade, que até então reinava no palácio, desapareceu. A nova rainha, que era uma feiticeira perversa, conseguiu dominar o velho rei. A primeira coisa que ela fez foi afastar Lúcia do palácio, mandando-a para a casa de uns lenhadores, que moravam numa floresta longínqua.
Quanto aos onze príncipes, tantas mentiras a bruxa disse a seu respeito, que o rei acabou não querendo mais vê-los. Então, a feiticeira resolveu encantar os meninos. Depois de fazer uma porção de gestos mágicos, disse para os príncipes:
Voai, ligeiros, longe de nós, transformai-vos em aves, aves sem voz!
Os rapazes transformaram-se em cisnes brancos e saíram voando pelo céu afora. Eles deviam seguir para um lugar determinado pela bruxa. Durante a viagem, procuraram passar sobre a casinha da floresta, onde estava a irmãzinha. Mas já anoitecia. Por isso, embora tivessem batido as asas com força, não conseguiram acordá-la.
Quando Lúcia completou quinze anos, teve permissão para ir ao palácio. Assim que a rainha a viu, ficou louca de inveja e de raiva. A menina era de uma beleza deslumbrante. A bruxa quis transformá-la logo em cisne, e só não o fez porque o rei desejava vê-la. Resolveu esperar uma ocasião mais oportuna para lhe fazer mal.
Lúcia costumava nadar no lago que havia junto ao palácio. Um dia, antes de ela chegar ao lago, para lá dirigiu-se a rainha, levando consigo três sapos horríveis.
Na margem do lago, atirou o primeiro sapo para a água, dizendo: Quando Lúcia estiver a nadar, salta na cabeça dela, para a fazer tão estúpida como tu!
Quando atirou o segundo sapo, berrou: Salta no rosto de Lúcia, para a fazer tão feia como tu!
E, quando atirou o terceiro sapo, berrou: — Fica perto do coração de Lúcia, para que se torne perversa e má!
Os sapos fizeram tudo o que a rainha ordenou. Quando a menina saiu do lago, mais parecia um bicho que um ser humano. Ao vê-la, o rei ficou horrorizado. E mandou que ela voltasse para a floresta.
É bom lembrar que Lúcia ficou muito feia, mas não se tornou má. O sapo não conseguiu modificar o seu coração bondoso. Tendo sido desprezada pelo seu pai, a jovem resolveu sair à procura dos seus queridos irmãos.
Viajou dias e dias, atravessando montes, vales e cidades. Durante a viagem, encontrou, numa floresta, uma velha faminta que lhe pediu um pedaço de pão. Lúcia deu-lhe pão, com prazer, e ainda foi apanhar, no riacho, um pouco de água para matar a sede da velhinha.
Esta, que era Nossa Senhora disfarçada, mandou que Lúcia comesse uma frutinha silvestre que crescia à beira do ribeiro. A moça obedeceu e, no mesmo instante, desencantou-se, voltando à sua beleza natural.
Lúcia continuou a viagem. No meio do caminho, encontrou um velhinho a quem deu o seu último pedaço de pão. Perguntou-lhe, então, se tinha visto onze príncipes tão belos como o sol. O velho respondeu: — Que coincidência! Não vi os onze príncipes. Mas vi onze cisnes belíssimos, cada qual com uma coroa na cabeça!
E mostrou o lugar onde vira as lindas aves. A princesa seguiu para lá, sentou-se e ficou à espera o dia inteiro. Quando o sol começou a desaparecer no horizonte, a moça ouviu um barulho de asas. Olhou para o céu e viu surgir onze cisnes voando apressadamente. Pousaram na terra e esconderam-se sob uma moita. Lúcia aproximou-se e ficou a vigiar.
Quando os últimos raios do sol desapareceram, as penas dos onze cisnes caíram por terra e eles transformaram-se em belos rapazes. Lúcia correu para eles, radiante de alegria. Reconheceram logo a irmã e cobriram-na de beijos e abraços. Que contentamento! Que felicidade!
A menina contou-lhes a sua triste história e eles narraram como tinham sido encantados pela cruel feiticeira. E o príncipe mais velho explicou: —  Durante o dia, temos a forma de cisnes. Mas, logo que o sol desaparece, voltamos a ser homens. E por isso, que temos sempre o cuidado de chegar a terra firme antes que anoiteça, pois, se estivéssemos voando nos ares, cairíamos de repente e morreríamos.
—  Onde moram vocês? – Perguntou-lhes Lúcia.
—  Num lugar muito distante daqui, além dos mares. A viagem para lá é muito longa. Voamos dois dias sobre o oceano. No meio do caminho, só existe um rochedo isolado entre as ondas. É tão pequeno que nele só há espaço para ficarmos de pé, apertados uns contra outros. Quando o mar está agitado, cobre-nos de espuma da cabeça aos pés. Contudo, damos graças a Deus por termos aquele pequeno rochedo.
—  Quantas vezes, por ano, podem vir até aqui? - Indagou a princesa.
—  Somente uma vez. E só podemos demorar-nos onze dias. Chegámos há dez dias. Por isso só temos um dia para ficar contigo.
A princesa e os irmãos ficaram a conversar durante muito tempo. Depois, vencida pelo cansaço, a menina adormeceu. Quando acordou, ouviu um forte bater de asas. Eram os irmãos que tinham voltado à forma de cisnes e que deviam passar o dia a voar.
Quando a tarde caiu, os cisnes voltaram e, assim que o sol desapareceu, retornaram à forma humana. Então, o mais velho dos irmãos disse para Lúcia:
—  Já que te encontrámos, não queremos perder-te. Vamos passar a noite fazendo uma rede para podermos levar-te connosco.
E começaram logo a trabalhar. Apanharam uma porção de ramos e folhas para construírem uma rede resistente e macia. Pouco antes de romper o dia, o trabalho estava terminado.
Lúcia sentou-se na rede que foi elevada no ar pelo bico dos onze cisnes. Durante todo o dia, os pássaros voaram sem parar. Já estavam exaustos de carregar a rede, mas não desanimavam. A menina tremia só em pensar que poderia anoitecer, sem que chegassem ao rochedo perdido no meio do oceano. Mas, finalmente, quando os raios do sol começaram a desaparecer, a pequenina rocha surgiu no horizonte.
Quando a noite chegou com o seu manto de estrelas, a menina e os onze cisnes pousaram no rochedo. Os príncipes retomaram a forma humana. Tiveram de ficar estreitamente unidos para não caírem no mar. Assim que o sol nasceu os rapazes tornaram-se, novamente, cisnes e , com os bicos seguraram a rede, bateram as asas, e levaram pelos ares a jovem princesa.
Após viajarem o dia inteiro, chegaram, finalmente, ao seu destino. Os irmãos viviam num penhasco, em frente ao mar, onde havia uma caverna, que era a sua morada. Dentro da caverna, que era muito limpa, viam-se camas de musgo bem arrumadas. Lúcia ficou ali com os irmãos que, nesse momento, acabaram de voltar à forma humana. Depois de conversar longas horas com os príncipes, Lúcia resolveu descansar. Mas, antes de dormir, rezou, pedindo a Nossa Senhora que lhe ensinasse, em sonhos, uma maneira de quebrar o encanto dos seus irmãos.
Quando ela adormeceu, Nossa Senhora apareceu-lhe no sonho e disse-lhe:
— Poderás quebrar o encanto dos teus irmãos. Mas, para isso, é preciso muita fé e perseverança. Existe perto deste penhasco, bem como nos cemitérios, uma urtiga que tem propriedades maravilhosas. Quando a apanhares, ficarás com as mãos inchadas e empoladas. Deves colher grande quantidade dessa planta e, com ela, tecerás onze túnicas. Quando estiverem prontas, atiras as túnicas de urtigas sobre os teus irmãos e, então, o seu encanto ficará quebrado. Voltarão, para sempre, à forma humana. Mas, para que tenhas êxito, é necessário que, enquanto estiveres tecendo as túnicas, não digas uma só palavra. Durante esse tempo, qualquer som que saia de tua boca ferirá como se fossem onze punhais cravados no coração de teus irmãos.
Quando Lúcia acordou, caiu de joelhos, agradecendo a Nossa Senhora o conselho que lhe dera. Depois, saiu da caverna e deu início ao seu trabalho. Começou a arrancar as folhas de urtiga que nasciam perto do penhasco. Quando o sol se pôs, voltaram os seus irmãos e perguntaram-lhe o que estava fazendo. Nem uma palavra de resposta. Os príncipes ficaram muito tristes, acreditando que a mudez da irmã era mais uma feitiçaria da madrasta. Mas, quando viram as mãos feridas e o trabalho que ela executava, sem parar, perceberam que fazia aquilo para quebrar o encanto deles. O príncipe mais novo pôs-se a chorar, beijando as mãos da irmã. E onde caíam suas lágrimas, desapareciam as bolhas e as feridas.
De repente, ouviu-se o som de uma trompa de caça. Era o soberano daquele reino que caçava nas proximidades da caverna. Ao ver Lúcia, ficou deslumbrado com  a sua beleza. E resolveu levá-la para o palácio real.
Lá chegando, a princesa retirou-se para o rico aposento que lhe haviam oferecido. Havia trazido consigo o molho de urtigas e, por isso, continuou a trabalhar, febrilmente, durante a noite. Havia de libertar os seus irmãos!
Alguns dias depois, o rei não pôde resistir à paixão que o dominava e pediu a menina em casamento. Lúcia que estava enamorada do jovem soberano aceitou o pedido, mas não pôde dizer uma palavra. Sabia que, se o fizesse, causaria a morte dos seus onze irmãos.
Realizou-se o casamento com grande pompa. O rei supunha que a sua linda esposa fosse muda e por isso redobrava os seus carinhos para com a moça. Tinha pena da sua triste situação. E Lúcia cada vez amava mais o rei e lamentava não lhe poder contar a sua triste história.
A moça já tinha tecido várias túnicas, quando lhe faltou as urtigas. Sabia que só podia encontrá-la no cemitério e, numa noite de luar, para lá se dirigiu.
Mas houve alguém que a viu sair do palácio e a seguiu. Era um fidalgo que odiava Lúcia, pois pretendia ver a sua filha casada com o rei. Por isso, quando viu a menina entrar no cemitério, foi avisar o rei, dizendo-lhe que a rainha talvez fosse uma feiticeira. O soberano ficou muito triste e resolveu vigiar a esposa.
Dias depois, tendo faltado, de novo, as urtigas, Lúcia tornou a ir ao cemitério. Mas desta vez, foi seguida pelo rei e outras pessoas. Viram-na aproximar-se de um túmulo, onde algumas aves de rapina estavam a devorar um cadáver. O rei não quis ver mais, julgando que a sua esposa era na verdade uma bruxa repugnante.
Como não podia falar, Lúcia não pôde defender-se e, por isso, foi condenada a morrer na fogueira. Quando os onze príncipes souberam disso, já era véspera da morte da irmã. Correram ao palácio para falar ao rei. Os guardas disseram que não podiam acordar Sua Majestade. Os rapazes insistiram, suplicaram, ameaçaram e já se dispunham a lutar com a guarda real, quando romperam os primeiros raios de sol. Os príncipes desapareceram, e viu-se um bando de cisnes esvoaçando, desesperadamente, por cima das torres do palácio. 
Chegou a hora da execução de Lúcia. A multidão enchia a praça principal da cidade. Daí a pouco, surgiu a menina numa velha carroça. Estava pálida e abatida, mas os seus dedos trabalhavam sem cessar. Já tinha, ao seu lado, dez túnicas prontas. Só faltava uma!
O carrasco quis jogar fora as túnicas, mas a moça olhou para ele com um ar tão suplicante que o homem não pôde recusar-lhe o último favor. A multidão, porém, cobriu-a de injúrias e avançou para despedaçar as túnicas.
Nesse momento, surgiram, fazendo grande barulho, onze cisnes lindíssimos, que começaram a dar bicadas terríveis nas pessoas que queriam atacar a carroça. Enquanto isso, a moça não parava de trabalhar. Finalmente, ficou pronta a última túnica.
Na ocasião em que o carrasco ia atirar Lúcia na fogueira, os onze cisnes  aproximaram-se para se despedir da irmã. Ela jogou, então, sobre eles as túnicas de urtiga. No mesmo instante, os cisnes transformaram-se em onze príncipes de uma beleza deslumbrante. Estava quebrado e encanto!
— Agora já posso falar. Estou inocente! - Exclamou a moça. E contou ao rei, que estava presente na praça, a sua triste história.
A pena de morte foi logo revogada. O rei ficou louco de alegria e cobriu a esposa de beijos e abraços. Houve muitas festas no reino. E a todas assistiram os onze príncipes, que passaram a morar no palácio, junto da sua querida irmã.

Contos Maravilhosos – Theobaldo Miranda Santos, Ed. Nacional


Sem comentários:

Enviar um comentário